Foto: Arquivo Público - Panorâmica da Rua Santana, em Ferros-MG, meados do Século XX
Semana passada recomecei a escrever. Como que transportada por um DeLorean bem mineirinho, me permiti tomar acento na cadeira de motorista e começar uma viagem de volta para o meu passado.
A decisão de trazer minha aposentadoria para o meu vale me trouxe também uma vontade de falar das coisas, memórias e pessoas que sempre evitei comentar. Guardadas num ciumento e cioso silêncio nos cofres de meu coração.
Um certo pudor de me expor sempre me acompanhou e fez de mim uma pessoa considerada até mesmo meio misteriosa. Só fiquei sabendo disso bem recentemente, conhecimento trazido por algumas pessoas amigas mais expansivas que não se deixaram intimidar por esta minha cara de “Gonçalves”, assim meio fechada, sisuda e com ares de brava. Amigos estes que me confessaram ter notado que algumas pessoas pisavam em ovos quando queriam perguntar algo sobre mim.
Pois bem, destravei a língua - ou melhor, os dedinhos no teclado- e agora me ponho a falar de mim com a facilidade que o distanciamento trazido pelo longo tempo já decorrido me proporcionou.
Não sei se é legal fazer estas memórias virarem letras a serem lidas por aí, não sei se melhor seria continuar a cultivar a áurea de mistério com que tentei proteger minha intimidade e a mim mesma dos comentários e julgamentos alheios. Parodiando o grande mestre Suassuna, que nos ensina a falar besteiras sem medo de ser ou parecer ridículo com nossas ternas e pequenas reminiscências afetivas, eu me permito também dizer: “- Não sei, só sei que foi assim...”.
...Arrastava a cadeira de palhinha pelo assoalho. Fazia uma força enorme para atravessar todo aquele chão de tábuas corridas- escandalosamente guinchadeiras e reveladoras do menor movimento sobre elas- fazendo o mínimo barulho possível. Não era permitida a entrada e, muito menos, a desarrumação da sala de estar do velho casarão colonial. Ser pega na desobediência de ordens severas sempre trazia consequências meio doloridas para o trazeirinho de quem ousasse desafiar a autoridade materna.
Ali, naquela sala mais que reservada, estava a mobília original do casamento da mãe. Mobílias de delicadas madeiras torneadas que se tornariam um pesadelo na minha vidinha de criança mais crescida com a obrigação de “tirar o pó” e dar o lustro com o melequento do “óleo de peroba” sem deixar que o líquido nojento e pegajoso manchasse as palhinhas do acento de cadeiras e poltronas ali colocados num círculo perfeito em volta da mesinha de centro. Mesinha redonda, alta e com pés caprichosamente torneados, onde a bendita poeira da rua achava incontáveis e inacessíveis desenhos para se esconder de minhas mãos, mas nunca dos olhos de águia de minha mãe, que fazia questão de verificar a qualidade do trabalho após o término da tarefa delegada por ela.
Este era o ambiente da casa pertencente às visitas, aquelas mais cerimoniosas, que demandavam certo decoro e muita compostura (conseguida muitas vezes através do famoso silencioso beliscão-cala-a-boca, discretamente aplicado nos mais afoitos e saidinhos, mas nunca em mim que me recusava a não berrar apavorada toda vez que mãe tentou me calar com um deles) e por isso mesmo, a sala era mantida fechada e fora do acesso da criançada da casa.
Meu corpo ainda tão pequeno se movia pela vontade desafiadora que havia ali guardadinha. Maior mesmo só a curiosidade que se via no brilho daqueles olhinhos estrábicos que pareciam querer olhar todos os lados do mundo ao mesmo tempo. Era capaz, sim, quem provaria que não?
Passo a passo, vencia tábua por tábua até alcançar a janela e, por ela, a visão da chuva que caía. Chuva mansa na rua, mas que caia em grossas colunas despejadas pelas calhas em forma de tubas que saíam do telhado e iam até o final do passeio, encharcando quem passasse ali distraído e não se desviasse a tempo. As gotas de chuva caindo nas pedras da calçada pé de moleque repicavam e viravam, aos olhos encantados que as observavam, sacis pulando alegremente, saltando felizes para as poças onde os outros irmãos, maiores e mais livres, já nadavam.
Aí dava outra vontade, a de lançar barquinhos de papel e vê-los navegar lindamente na enxurrada até caírem no buraco da boca de lobo para onde iam apressados pelo declive da rua. A mesma boca de lobo que quando não estava chovendo virava esconderijo perfeito nas brincadeiras de esconde-esconde. Depressa, que a mãe só permitia brincar na rua até as 7h da noite. A rua era imensa como o mundo. As outras bocas sonolentas das casas coloniais- as portas de madeira pesadas que muitas vezes dormiam destrancadas pelo descuido de quem não precisava se preocupar com segurança- se abriam ruidosamente para aquela pequena hora de liberdade noturna e vomitavam para a rua a criançada, que saía assanhada e cheia da determinação de não perder um segundo sequer daqueles momentos preciosos.
O banho era de noite, depois de entrar suada e feliz daquela hora de liberdade vigiada por olhos atentos nas janelas e calçadas... água quente saía da serpentina do fogão que cozinharia o jantar, atravessava a clarabóia e ia cair na banheira de louça verde, o maior navio que já singrara por mares bravios... Cama e dormir antes das 10h, porque às 10h a luz (tomates penduradinhos nos postes de madeira das ruas) se apagava: a cidade precisava dormir e também a usina precisava respeitar o horário de ser desligada.
Quando chovia, a areia descia junto com a água e entupia o rego da usina. Nestas noites, a cidade ficava sem luz também, sendo ou não marcadas as dez da noite... Era naquele escuro da rua anoitecida que surgiam misteriosas cobras de meias velhas, compridas e desajeitadas, atravessando a rua e assustando quem não notasse o bandinho de crianças dissimuladamente puxando cordinhas do passeio onde se sentavam e fingiam contar longas histórias de assombrar a escuridão do negro lençol da noite. Escuridão furada pelo brilho das lamparinas e lampiões que enchiam nossos narizes de fumaça e estranhos riscos pretos...
A menina cresceu, tomou outras chuvas, abriu e fechou outras janelas, arrastou várias outras pesadas e barulhentas cadeiras de palhinhas, lançou outros barquinhos de papel pelas correntezas. Mas uma coisa ela nunca vai deixar escapar como areia pelos dedos da vida: a música que ouvia tamborilar nas gotas molecas de chuva que dançavam sob seus olhinhos estrábicos e arrebatava sua imaginação para as viagens intermináveis que sempre amará fazer.
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