A vida de Lacarmélio Alfeu de Araújo é uma verdadeira história em quadrinhos. São muitas as facetas, superações e capítulos na trajetória do menino nascido no interior de Minas, mais precisamente em Itabirinha, leste mineiro, que chegou a capital mineira aos 13 anos de idade, em 1972, e desde sempre quis viver da sua arte, de seu sonho
Em Belo Horizonte Lacarmélio trabalhou nas ruas como ambulante, engraxate, lambe-lambe no Parque Municipal, sempre mirando nas bancas de revistas as histórias que não eram as dele. Aos 15 anos criou o super-herói que lhe rendeu também a alcunha: Celton. Sobre a escolha do nome, ele esclarece: “Eu queria um nome que fosse fácil de ser falado em qualquer língua, um nome curto, forte, expressivo, daí veio Celton. Acho um nome bem brasileiro e diferente.”
Até chegar ao herói e à primeira revista foram anos e anos de amadurecimento e aprendizado. Primeiro percorreu as grandes editoras de HQ do país do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, sempre ouvindo um sonoro não, com a justificativa final: “Brasileiro não compra quadrinhos de brasileiro”. Era a imperiosa verdade. Depois de largar um emprego estável no governo do Estado, no extinto DAE - Departamento de Água e Energia - e perder suas economias nas peregrinações em busca de editora, decidiu, depois de um empréstimo da mãe incentivadora, editar sua primeira revista, em 1981, com a surpreendente tiragem de cinco mil exemplares. Foi o primeiro grande fracasso editorial de Celton e sua epopeia em quadrinhos. Pelos desenhos apresentados, foi trabalhar com arte finalista de muitas gráficas de Belo Horizonte. Como as revistas ficaram encalhadas, Lacarmélio lembrou-se do antigo tempo de ambulante e foi para as ruas vender sua arte primeira. As portas dos teatros, shows, bares, restaurantes foram tornaram-se seus points, lembrando que onde mais vendia era no restaurante Casa dos Contos, no bairro Funcionários, dos tempos de Tadeu e Neli Rosa.
As publicações continuavam, as dívidas aumentavam, até que o super-herói foi buscar a vida em outro cenário, a New York do Homem Aranha e de seus sonhos infantis, isso em 1992. Lá percebeu que os heróis viviam no universo da cidade, o cenário natural, o que mudaria os roteiros e os caminhos de Celton na Belo Horizonte que viu o super-herói nascer.
De volta a capital mineira, seis meses depois, ficou um tempo sem editar as histórias de Celton, até que em 1998 voltou com toda força ao super-herói que agora vivia a Belo Horizonte do dia a dia. Aí nasceram histórias com a capital como cenário principal. Celton começou a andar pelas ruas da cidade, pela Praça Sete, Maletta, Mineirão, rodoviária. Aí vieram as edições dedicadas ao universo belorizontino, com as histórias da Loira do Bonfim, do Capeta do Vilarinho, da Sogra Maldida, todas ambientadas na capital de todos os mineiros.
Nessa nova fase, as revistas deixaram de ser vendidas na noite e ganharam os sinais de trânsito. “Nos sinais obtive outra visibilidade, essas vendas me levaram para a TV, até que fui ao programa do Jô Soares. Aí tudo mudou, o Celton passou a ser um super-herói nacional”.
Profundo conhecedor do universo HQ e sua produção editorial, Lacarmélio vai enfileirando datas, personagens, autores e heróis em todos os tempos do quadrinho universal. Ao final, sem perceber, Lacarmélio, ou melhor, Celton, nos deixa claro que o grande herói nessa história toda é ele mesmo, um brasileiro que acredita, faz, edita, vende e vive da sua arte, do seu próprio sonho.
Quadrinho que compõe a trilogia que será publicada em preto e branco, trazendo Tiradentes em destaque
Um herói verdadeiro
Apaixonado por Tiradentes, Lacarmélio agora se aprofunda na história de um herói real, o mítico Tiradentes, e dedica uma trilogia especial para contar a sua visão, ou versão, de Tiradentes e da Inconfidência Mineira. “Essa vai ser a minha melhor publicação, a minha melhor história, a minha grande obra”, diz ele com convicção.
A trilogia traz novidades, com cenário em terceira dimensão, a primeira de sua lavra. Para isso, visitou Ouro Preto, localizou o local exato onde ficava a casa de Tiradentes que foi queimada, percorreu os corredores da Casa dos Contos, mapeou e fotografou com detalhes os cenários da Inconfidência relatados nos Autos da Devassa. “Estou fazendo uma pesquisa profunda, localizando os prédios que existiam na antiga Vila Rica para compor um cenário histórico, bem próximo ao da época. Passei dias trabalhando em uma página que trazia Passei dias trabalhando em uma página que trazia a igreja São Francisco de Paula, conhecida como Chico de Cima, ao fundo, até descobrir que no tempo da Inconfidência essa igreja ainda não existia. Sua construção começou em 1804. Pena, pois a página estava linda”, diz ele com os olhos fascinados pela história que está construindo.
Em sua pesquisa, que está se aprofundando nos personagens, se deparou com a figura de João Rodrigues de Macedo, que lhe chamou a atenção. “Há muitos quadrinhos dedicados ao João Rodrigues de Macedo, acho que ele teve uma participação mais ativa naquele tempo, mas que ficou um pouco encoberta”. “Existe também a parte da liberdade artística nessa minisséria, quando coloco Tiradentes discursando em plena Praça Tiradentes, a qual, logicamente, não tinha esse nome na época. Tiradentes estará no meio daquele cenário, com todo o casario a sua volta e seus detalhes barrocos, com o povo o ouvindo embevecido, está ficando muito bonito”.
Lacarmélio acredita que o ‘suicídio’ de Cláudio Manoel da Costa foi encomendado pelo governador das Minas Visconde de Barbacena e dedica uma passagem a ele, que fala com o assassino anônimo à porta do Solar do Macedo, hoje Casa dos Contos: “Acabou tudo, vamos embora, vamos embora”.
Em um país de poucas histórias, memórias e quase nenhum herói, ver a vida de Joaquim José da Silva Xavier ganhar as páginas dos quadrinhos, ir para as ruas, e chegar aos corações dos meninos do Brasil será um grande feito, uma marco. Uma verdadeira inconfidência cultural e ideológica, tendo ao centro aquele que se recusou a negar seus sonhos e seus ideias e por isso está sozinho, até hoje, no alto da Praça de Ouro Preto, mirando o infinito.
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